Por Marina Slhessarenko Barreto
Os haters de spoiler que me perdoem pela transgressão: preciso começar essa resenha pelo final do novo O girassol que nos tinge, de Oscar Pilagallo, lançado pela Fósforo. A última frase do epílogo revela a tese pressuposta a cada linha do livro: falar sobre o passado é falar sobre o presente. Não dá para a democracia andar bem, obrigada, se a história sobre seu advento é sufocada. Daí a importância do livro sobre as Diretas Já, o maior movimento civil que o Brasil já teve e que o reconduziu à rota democrática.
Acontecido há quase quarenta anos, o movimento já foi tema de outros livros. Esse vale por ser um enredo contado por uma testemunha ocular do período, com destaque para as articulações políticas, civis e culturais de base. Mais: uma testemunha que, já tendo sobrevivido aos solavancos de dois impeachments, junho de 2013, presidência Bolsonaro — e agora respira alerta sob um novo Lula —, olha retrospectivamente para o período e não só o narra, mas o presentifica para uma geração posterior. Apenas 25% da população atual do país tinha mais de dez anos à época do movimento.
Pilagallo transforma uma trama complicada em um romance digno das melhores séries da HBO
Trazer as Diretas Já ao presente não é uma tarefa banal. A bruta catapulta não funcionaria. O interesse advém de uma linha de continuidade de alguma forma entendida como rompida — e aqui de novo me valho do epílogo, combinado à apresentação. Pilagallo deixa a magistralidade dos fatos falar por ela mesma: não tivemos desde então outro movimento tão grande e consensual em prol da democracia — fora as vivandeiras alvoroçadas, o movimento uniu forças muito diferentes da sociedade brasileira. Nem junho de 2013 nem #EleNão nem #ForaTemer nem qualquer outro vocalizaria tanta unidade de propósito e força. Voltar às Diretas, por isso, é voltar ao que temos de comum, à cultura democrática que ensaiamos juntos e se embotou frente a uma avalanche de acontecimentos posteriores.
Bastidores
Segundo o autor, a mesma coalizão de forças que nos levou a um Lula 3 levou o Brasil a Tancredo, Sarney e depois Collor. Isso por si só pode dar azo a uma série de interpretações, que o autor deixa a cargo do leitor. O importante é notar que houve lá como há aqui uma grande frente democrática em comum, que uniu da direita à esquerda do espectro político. O que interessa a Pilagallo não é produzir grandes narrativas sobre o caminho da redemocratização. Antes, ele prefere a miudeza da construção do front, a frente do boteco e as fofocas de bastidores — algumas saborosas como a hesitação inicial de Lula ante a política sindical e o apelido pejorativo “Tancredo Never”, dado por Figueiredo. Demérito nenhum; muito pelo contrário.
Pilagallo consegue trazer o peso da história para a cabeceira da cama: transforma uma trama complicada, cheia de avanços e recuos, em um romance digno das melhores séries da HBO — fica aqui a dica aos olheiros de plantão. Seria um digníssimo livro de memórias se o protagonista não fosse nada mais nada menos que nosso próprio país, e as fontes não fossem principalmente relatos jornalísticos e bibliográficos sobre os atores da época.
O despojo narrativo também não deve ser confundido com negligência factual. O traquejo todo está em trazer aos créditos de começo o nome dos atores que carregaram as Diretas no colo. Além de Dante de Oliveira, o político mato-grossense autor do projeto das Diretas Já que encampa a luta pessoalmente, diversas outras figuras vêm à tona, do primeiro indígena-deputado do Brasil, cacique Mário Juruna, ao jornalista assassinado Vladimir Herzog. São eles que movem o enredo, muito bem acompanhados por referências artísticas, futebolísticas e culturais de toda sorte. Aos atletas atentos, a ideia da Democracia Corinthiana é contada do banco da frente, bem como outras filigranas do futebol brasileiro.
Voltar às Diretas é voltar ao que temos de comum, à cultura democrática que ensaiamos juntos
Aos entusiastas de MPB, versos estridentes preenchem as lacunas da prosa, com referências aos hinos incontornáveis que cantaram a campanha. Não bastasse isso, o autor adiciona generosamente a um apêndice a harmonia do “Frevo das Diretas”, composto por Moraes Moreira e Paulo Leminski — um dos símbolos encomendados pela agência publicitária Exclam para a campanha e perdidos das plataformas musicais atuais (vasculhei o YouTube e só consegui achar um trechinho mergulhado em uma cobertura icônica do comício na Praça da Sé). O refrão dizia: “Se a meta é a democracia/ se a democracia é a meta/ eleição é direta […]/ Eu quero votar/ eu quero votar/ pra presidente”.
O lado institucional das Diretas — a elaboração da emenda à Constituição — é ponto de referência inescapável, mas cede o palco a sua ressonância na esfera pública como movimento civil amplo. Erguer as Diretas para além do Congresso está no centro do debate e ele é recapitulado de forma íntima, pessoal e situada. Afinal, o autor atua como jornalista desde 1975 e entrou para a equipe da Folha de S.Paulo em 1982, envolvendo-se diretamente com a campanha na redação. Uma foto reveladora mostra os bastidores dessa fase, e várias outras bem reveladas ajudam o leitor a navegar pela narrativa.
Como o rolo de câmera mostra, construir a democracia de hoje exigiu muito chão. Na prosa aprazível do autor, ela resultou da “relação simbiótica entre o gabinete e a praça”. Muito além dos elegantes salões verde e azul e do plenário que veio a se chamar Ulysses Guimarães, ela exigiu canteiros de toda obra. Estádios de futebol, bares pitorescos, palcos extravagantes e outros tantos bailes da vida — como nos versos coetâneos de Milton Nascimento. Lançada em 1981, a música viria a ser bastante tocada nas rádios junto de outros sucessos do artista reconhecidos como “hinos das Diretas” — “Coração Civil”, “Menestrel de Alagoas” e “Coração de Estudante” —, que inundaram os palanques das Diretas.
Passo a passo
A obra está organizada em três partes, que correspondem ao prelúdio, desenvolvimento e desfecho das Diretas Já. Os preparativos começam com a figura de Teotônio Vilela, senador imortalizado na música “Menestrel de Alagoas”, composta por Fernando Brant e Milton Nascimento. Invertendo a praxe da juventude revolucionária e da velhice transviada, o político foi, nas palavras de Pilagallo, um “incendiário tardio”. Até meados da ditadura, arenista, ele compactuou com os generais, quando então começou a inflamar um discurso pró-democratização. Inspirado na sua figura, foi Henfil, o desbocado cartunista, que lançou o slogan que viria a pegar: “Diretas Já!”.
Um câncer fulmina o senador no dia em que as Diretas ganham as ruas pra valer, 27 de novembro de 1983 — em junho, já tinha havido um ensaio geral em Goiânia; agora, impunha-se uma multidão na Praça Charles Miller. Aqui começa a segunda parte do livro. A campanha roda o Brasil, arrastando multidões para o que o autor apelida carinhosamente de festa cívica ou carnaval — quem sabe o único evento nacional edificante de tamanhas multidões e comparável às Diretas e suas manifestações com mais de 100 mil pessoas.
A campanha que perdeu no Congresso ganhou ao fermentar no povo uma visão compartilhada
Para incorporar o espírito carnavalesco, os comícios contaram com marchinha oficial e também abadás bem produzidos, com os dizeres “eu quero votar pra presidente” em fundo amarelo — a “extravagância cromática” das Diretas, nos termos da Folha de S.Paulo. Pilagallo atribui a inspiração do amarelo à campanha “use amarelo pelas Diretas”, cujo manifesto menciona nominalmente a força do amarelo como o “girassol que nos guia, tinge e alimenta” (e dá nome ao livro). À parte as disputas cromáticas, os bastidores da política da oposição também são narrados passo a passo. Os atritos entre Franco Montoro e a esquerda petista em São Paulo, as estratégias camaleônicas de Leonel Brizola e as virtudes conciliatórias (vampirescas, segundo Henfil) que alçaram Tancredo Neves a candidato ideal da oposição à presidência são costurados em detalhes.
O envolvimento amplo de Ulysses Guimarães — também conhecido como “Senhor Diretas” — também entra em peso, bem como sua candidatura posteriormente minguada e a aproximação arriscada a Sarney. Aliás, bem como outros atores envolvidos nos palanques das Diretas, Ulysses é perfilado em um dos apêndices, que mostra a trajetória dos atores das Diretas depois de 1985. Outros ricos documentos mostram a cronologia do movimento, como votou cada deputado e sua carreira depois disso.
Por mais que a vanguarda democrática tivesse lutado com unhas e dentes, a emenda morreu na votação plenária, por 22 votos. O autor é quase um roteirista ao contar as estratégias policialescas adotadas durante a votação, desde as medidas de emergência da véspera aos cortes de linhas telefônicas e censura à cobertura midiática digital. Uma arapuca dos generais, a emenda Figueiredo também atrapalhou a mobilização na boca do gol. Com o objetivo de descapitalizar a emenda de Dante, ela veio a propor eleições diretas em 1988. Foi retirada pela mão grande de Figueiredo assim que a oposição decidiu pegar carona para aprovar as diretas, já tendo a emenda de Dante fracassado.
A história termina com a eleição de Fernando Collor, sete anos depois da proposição da emenda original. Para endireitar o país, sem Lula ou Brizola, o primeiro presidente eleito viria a fazer história desde o início, não só como o primeiro presidente diretamente eleito desde a redemocratização, mas também o primeiro a sofrer um impeachment desde 1985. Agora, em pleno 2023, ainda veio a ser condenado a mais de oito anos de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro por fatos muito posteriores.
O povo
Pilagallo faz um passeio cuidadoso e potente pela nossa sociedade em busca da democracia. Conta a história de brasileiros que fizeram de tudo para puxar a história pelas rédeas e sonhar com um futuro mais democrático. Mais que isso, mostra como a campanha que perdeu no Congresso ganhou ao fermentar na esfera pública uma imaginação compartilhada da política construída coletivamente pelos próprios cidadãos. Uma política elaborada e veiculada por atores, músicos, escritores, artistas, sindicalistas, trabalhadores, atletas, todos juntos.
Em tempos de dissensos abissais, um dos maiores méritos do livro talvez seja nos rememorar o que tínhamos em comum. Vivemos de passados, seletivamente estruturados. Precisamos de alguma construção sobre o passado para nos construir no presente. Presentificamos o ausente porque exigimos, como humanos, uma continuidade biológica, social ou metafísica. Parafraseando uma das frases mais viscerais da literatura do luto, carregamos nosso passado nas costas.
Não é que sejamos revanchistas, passadistas ou backward-looking, não necessariamente. É que somos, verbo intransitivo. E ser exige uma perspectiva temporal continuada. A construção e reconstrução do que vivemos. A desgraça da ilusão de que uma reta nos leva ao progresso infinito. Que o presente enterra o passado; que o futuro enterra o presente. Oscar Pilagallo mostra isso com primor, um passado que encharca o presente.
Marina Slhessarenko Fraife Barreto é uma estudante de mestrado (bolsista CAPES), graduanda em Filosofia e bacharel em Direito (2020) pela USP, com período sanduíche na Ludwig-Maximilians-Universität de Munique (onde obteve o Zertifikat in den Grundzügen des Deutschen Rechts) e em dupla graduação com a Universidade Jean Moulin Lyon III. É pesquisadora do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT).
Publicado originalmente no site Quatro ponto um, a quem estão reservados os direitos autorais.