Por Gilmar Mendes
O Estado Constitucional, modelo surgido após a 2ª Guerra Mundial, com a missão específica de promover nova forma de relacionamento entre direito e política, busca suprir essa omissão por várias frentes. Tem lugar, aqui, o “princípio esperança”: deve ser reconhecido, ao ser humano, espaço para um “quantum de utopia”; os textos constitucionais normatizam esperanças que erigem, ao menos, “desejos de utopia” concretos[2] e, se é certa minha hipótese, cumpre aos direitos fundamentais desempenhar um papel superlativo nesse sentido.
Guardadas as devidas diferenças, as novas ordens constitucionais da Alemanha (1949), Itália (1947), Portugal (1976) e Espanha (1978), têm esse traço em comum: comungaram do entendimento de que a superação de um período de autoritarismo é eficazmente realizada investindo em direitos fundamentais, inclusive mediante a criação de um Tribunal especializado em questões constitucionais.
O mesmo pode ser dito do Brasil de 1988. A Constituição de 1988 superou institucionalmente um modelo de democracia meramente formal baseado no autoritarismo do regime militar iniciado em 1964. Coube ao texto constitucional reunir as aspirações de uma sociedade que se afastava de mais de duas décadas de repressão. Isso explica seu foco em uma agenda social que transcende de longe aspectos meramente formais. Em um país onde o acesso aos direitos sociais básicos ainda não foi garantido a milhões de pessoas, não surpreende que a Assembleia Constituinte de 1987 tenha sido tão generosa. A Carta Magna também refletiu a perspectiva de que um Estado Constitucional é também um local de síntese e de proclamação dessas aspirações historicamente esquecidas.
A ênfase em uma agenda social, que em muito transcende aspectos meramente formais, está estampada logo no início da Constituição de 1988. Tal constitucionalização de “desejos de utopia” engendrou o surgimento de organizações sociais envolvidas criticamente na realização dos valores proclamados solenemente no texto constitucional. Por certo, em um país como o Brasil, em que o acesso a direitos sociais básicos ainda não é garantido a milhões de pessoas, não surpreende a generosidade do Poder Constituinte, a refletir a perspectiva de que o Estado constitucional também é um espaço de síntese e de proclamação de esperanças que, historicamente, foram esquecidas.
O texto constitucional, entretanto, é apenas ponto de partida. Há muito ainda por fazer. Por um lado, é sempre necessário envidar esforços para que não experimentemos retrocessos quanto aos avanços conquistados no plano dos direitos de liberdade e de igualdade. De outra banda, o combate ao enorme nível de desigualdade social do Brasil — uma chaga de séculos — avança em passos muito tímidos.
De acordo com balanço divulgado pelo IBGE, o país alcançou, no ano de 2020, a indelével marca de aproximadamente 9 milhões de pessoas vivendo em situação de extrema pobreza (renda per capita inferior a R$ 89, segundo critério de elegibilidade do Programa Bolsa Família). Paralelamente, estudos recentes do IBGE apontam para contingente populacional de 16 milhões de cidadãos brasileiros em condição de pobreza (renda per capita inferior a R$ 178).
Como se percebe, o diagnóstico de Häberle quanto ao estado da arte da dogmática constitucional se faz carne também no âmbito da efetivação de direitos no Brasil: dentre as promessas da Revolução Francesa, nenhuma é tão olvidada quanto a fraternidade.
Tal ficou mais que evidente durante a trágica pandemia de Covid-19. O surgimento de uma crise sanitária de grandes proporções reforçou a incapacidade de os atuais marcos normativos possibilitarem uma resposta eficaz e articulada. A pandemia, igualmente, rememorou não ser viável qualquer discussão sobre saúde pública sem tratar de temas como saneamento básico, política habitacional, educação, segurança pública e garantia de meios reais de subsistência.
Os acontecimentos que se sucederam em 2020, mais notadamente no início da liberação do benefício assistencial pago, emergencialmente, aos mais necessitados, fizeram-nos refletir sobre o que a imprensa chamou de atenção aos invisíveis, quais sejam, os nossos concidadãos que viviam sem qualquer reconhecimento oficial do Estado: desprovidos de registro de identificação civil; inscrição em CPF (cadastro de pessoa física); conta bancária; ou qualquer forma estatal de comprovação de sua existência como cidadãos. Assistimos, atônitos, a diversas dificuldades operacionais de pagamento do auxílio emergencial em razão da inexistência de registro ou comprovação em cadastros estatais de milhares de pessoas, que conviviam em grandes centros e passavam como invisíveis para o Estado.
A partir dessa tragédia por nós experimentada, passou a ganhar força, no Brasil, a noção de que o Poder Público precisa de uma atuação balizada pela responsabilidade social.
O Brasil foi um dos pioneiros entre economias emergentes a adotar uma Lei de Responsabilidade Fiscal, com inegável sucesso no objetivo de criar uma cultura de controle e transparência na atividade financeira do Estado. Choca que, até hoje, não tenhamos feito o mesmo no âmbito social. Entre serviços universais e benefícios contributivos, é preciso que o Estado brasileiro funcione melhor, mediante uma cooperação entre os entes federados que aumente a sinergia entre os poderes locais, estaduais e o nacional; e que previna os “apagões decisórios” assistidos durante a Pandemia de Covid-19.
O país carece de uma determinação legal instituidora de gestão social responsável, que teria por finalidade a melhoria dos índices sociais e econômicos de grupos vulneráveis, além da fixação de balizas mínimas para melhoria da prestação de serviços públicos essenciais.
Forjar um Poder Público responsivo socialmente é a “condição de possibilidade” para o Brasil reduzir o fosso de desigualdade que subtrai a dignidade de milhões de famílias brasileiras. Não há mecanismo mais eficiente de superação dos círculos viciosos de transmissão intergeracional da pobreza.
A responsabilidade social operacionaliza a promessa revolucionária da fraternidade e pode constituir a chave por meio da qual poderemos abrir várias portas para a solução dos principais problemas hoje vividos pela humanidade em tema de liberdade e igualdade, para o bem da manutenção da ordem democrática. No tempo presente, em que a liberdade e a igualdade são desafiadas pelas inversões mais difamantes possíveis ao legado do constitucionalismo moderno, está na ordem do dia do direito constitucional inserir no debate político-constitucional o valor fundamental da fraternidade.
Que esse debate frutifique!
Gilmar Mendes é ministro do Supremo Tribunal Federal